quinta-feira, 27 de agosto de 2015

TRADIÇÃO E VIDA

Movidos, um após outro, na sucessão imparável do devir, os dias escapam-se e encerram o presente fugidio no sepulcro do passado. Esse presente ressuscita incessantemente –  a sua ressurreição chama-se presente projectado no futuro! Quando a linha, que ata estes momentos, é poderosa e reflecte a lei eterna, aí damos de rosto com a Tradição!

A riqueza do passado; a evidência do presente; e a chegada próxima do futuro são, pois, o património da Tradição. Vivemos no presente, escorados no passado e com os olhos postos no horizonte do futuro.

Nostálgicos do passado, nós? Não, mil vezes não! Entre os que o afirmam, alguns não são capazes ou não querem reconhecer como a transparência cristalina dos factos desmente o erro crasso em que incorrem; a maioria, porém, limita-se a fazer eco do que ouve a outros sem perceber uma palavra do que esses dizem. Para as mentes transtornadas que despejam tal desconchavo, a nossa nostalgia está na confissão da fé tradicionalista que professamos. Esses infelizes nunca repararam, que não é a nossa doutrina que regressa ao passado, mas são os tempos pretéritos que revelam uma força profética, só explicável por serem perenes os seus princípios.

A justeza dos ensinamentos, que nos legaram, salta à vista. A sociedade degenerou de maneira assustadora – confirmou-se o vaticínio formulado para o caso de os povos se desviarem do caminho que o direito natural aponta. Mas a salvação continua guardada no depósito impoluto da Tradição. A esperança segue viva por muito que os cépticos desanimem e declarem o contrário. E há-de ver-se justificada porque não é possível que a Tradição se extinga.

Na sua raiz ontológica, a Tradição política tem a potência constante de se ir tornando actual e, por isso, é dinâmica. Nenhuma confusão, pois, com sectores cronicamente avessos à mudança, os quais já apodreceram por acção dos miasmas dos pântanos em que estagnaram e onde tornam a mergulhar. A Tradição, no domínio do que é temporal, espelha a imagem do Ser rodeado dos seus atributos transcendentais: a Unidade; a Verdade; a Bondade; e a Beleza. A sua unidade permite-lhe exibir a elasticidade que basta para se manter indefectivelmente válida, sem perder a identidade metafísica que a distingue. O tempo passa, mas não a mata. Não a matou até hoje, nem conseguirá fazê-lo, porque a Tradição é um formidável desafio à morte. Formidável e vencedor, registe-se.

De facto, a Tradição não morre. Pode, contudo, revestir-se de dó. Hoje, esse dó alastra por um modo que inquieta porque sobram motivos para que a Tradição se cubra de luto. A Tradição parece prostrada esperando a hora de despertar. Este farol, guia fiel da Humanidade, dá a impressão dolorosa de que se apaga. Num mar de ondas alterosas, sobre o qual navegamos em nau desarvorada, sem agulha e sem leme, são claros os prenúncios de naufrágio.

Sabe-se que, na profundeza dos seus abismos, os oceanos revoltos do passado escondem muitos testemunhos da via-sacra da Tradição: a história nacional, aqui como noutros domínios, é eloquente. Mas repita-se a ideia: morte e Tradição não combinam. Os soldados da Tradição podem morrer (já muitos morreram e, após eles, muitos mais hão-de morrer); porém, a Tradição, essa não morrerá jamais.

A morte, em política, é a meta de uma enfermidade que toma nome na Revolução. Mas é bom que se saiba que, para o desenlace mortal, não trabalha só a Revolução. Não descuremos o perigo do conservadorismo e a morna religião dos moderados, seus parceiros de catástrofe.

O conservadorismo, esse agente morboso, que se insinua no meio dos povos, teme a flexibilidade da Tradição que vai quebrantar o sossego da sua fixidez. Entretanto, de envolta com ele, surge o moderado, ser incaracterístico, feito de metades, subespécie do género conservador, que se revolve na ilusão de ter descoberto a pedra filosofal da política num ponto de equilíbrio imaginário. O conservadorismo é, assim, a bissectriz da notória demência que um desenhador híbrido traçou, enquanto verberava os tumultos da Revolução e se retraía diante da agilidade da Tradição. O que faz com que conservadores e moderados sejam, há muito, cúmplices da Revolução: a maior parte das vezes sem dolo, talvez, mas nem por isso menos cúmplices.

José Agostinho de Macedo, homem de superior engenho, afirmava que os povos são desviados da Verdade por duas buzinas:1 a buzina da moderação e a buzina do adormecimento. Já assim era naqueles anos distantes. Nos tempos modernos, a buzina da moderação, baixando o som do pregão, segreda a ouvidos descontentes: não peças muito a ti próprio nem aos outros, porque isso é um resvalar desastrado para terrenos muito perigosos. Segue-se-lhe a do adormecimento: caladas as vozes contestárias, é o torpor que vem e  as pessoas passam a andar como se fossem sonâmbulas: não repugna admitir que estas são as buzinas tocadas pelos conservadores, as da música do antes mal que pior. E é sob o efeito deste estupefaciente duplo, que os povos vão avançando cegamente para o precipício que os há-de tragar.

Anos mais tarde, o espanhol Donoso Cortés, também ele figura de eleição, sustentava que as revoluções não existiriam se não houvesse moderados.2

Triste desfecho das contradições humanas: o moderado e o conservador, que se ufanam de não ser o que eles chamam retrógrados nem aceitam o nome de progressistas, que detestam a reacção, ao mesmo tempo que abominam as bruscas e violentas convulsões, estes estranhos actores são afinal o principal veículo da Revolução. Lado a lado, com eles arrastam a sina fatal do relativismo doutrinário, de cujos malefícios sofrem!

A Revolução terminará por sumir-se tão violentamente como é assassino o rasto que deixou e conforme os ódios que espalhou, enquanto quis modificar o homem. O conservadorismo, com a sua crónica esterilidade, há-de esboroar-se porque não sabe resistir aquele que não tem aptidão para renovar. Os moderados também se desfarão em pó porque são matéria informe e quem está neste caso não evita o aniquilamento. Juntos, uns e outros, eis formado um tipo curioso de monossomia, isto é, dois monstros vivendo como se fossem um só corpo: ora o destino das naturezas monstruosas é o desaparecimento. Os conservadores planeiam pôr freio à marcha das coisas, o que logo a simples evidência se apressa a mostrar que não é susceptível de se concretizar; os moderados, por seu turno, são como grimpas instáveis tomando a direcção para a qual o vento sopra. O conservador presta tributo ao positivismo legal: para ele quod constitum est, iustum est. Desprovido de um padrão absoluto, não rejeita a Revolução desde que ela se instale: numa rápida metamorfose, lá irá despontar outro acérrimo adepto desse novo estado de coisas. Do moderado, esse arauto do centrismo sem uma circunferência de raio curto ou longo porque nada há que se veja no centrismo, desse ente por definir, não é melhor o que se possa dizer: moeda fraca, oscilando ao sabor das flutuções daquelas que ditam o valor do câmbio, nunca alcançando cotação credível no mercado, satisfaz plenamente a especulação revolucionária. Só a Tradição perdurará porque, como resulta da sua natureza filosoficamente definida, ela apresenta, a seu modo, todas as notas constitutivas do que é um princípio transcendente e, nessa qualidade, de vitalidade imperecível.

Os pergaminhos da Tradição servem de justo fundamento à sua exigência e à sua selectividade, transformando-a na porta estreita através da qual se sobe ao cume da montanha. A Tradição é exigente no rigor das suas normas; e é selectiva na admissão dos soldados que recruta. O seu rigor é bem visível e por causa dele é objecto das mais ásperas censuras: as austeras condições de entrada depressa se volveram no alvo de quem ataca a Tradição, procurando afrouxar o quanto de apertado nelas há. Para quê? – Não é difícil adivinhá-lo!

Há, desgraçadamente, quem misture Tradição com o arraial de umas linhagens vaidosas da sua antiguidade e, por vezes, de um lustre bastante duvidoso para além de poder contar, com maior ou menor fidedignidade de prova documental, um número infindável de avós. Satisfazem-se com isto, porque de obras, passadas ou presentes, nem uma! Por obras, pretende referir-se a mortificação pela Tradição e, se as circunstâncias o reclamarem, será ainda mais, porque é a disposição de abrir mente e corpo à oblação última: passa a ser a virtude da fortaleza de quem não vacila em morrer abraçado àquela Cruz. Tomada a Tradição em toda a plenitude com que tem vindo a ser descrita, não será temerário afirmar que este suplício é, talvez, a forma suprema que a criatura humana pode eleger para comungar no drama que foi a Paixão e Morte de Cristo. Não é, decerto, o Martírio Infinito porque esse só o Salvador pôde oferecer; mas será, muito provavelmente, o Martírio Integral de que é capaz o homem. A História traz-nos inúmeros exemplos dessa doação no altar da Tradição; dos vivos, ainda ignoramos quantos terão esse heroísmo.

Voltemos, contudo, à feira de tolas futilidades em que descambou a antiga nobreza. Esse cortejo de uns tantos representantes do que foram castas apuradas, mas que hoje, fora de uns círculos fechados, onde deixam vulgarizar-se o que era uma inegável elegância de maneiras, que indisputavelmente possuíam e os diferençava do comum da população, essa gente inócua, no seu bacoquismo, já não convence ninguém e, em qualidade, é condizente a ausência de grandeza porque significa pouquíssimo ou mesmo nada. A isto está reduzida a aristocracia histórica.

Para ser combatente, nas hostes da Tradição, só dois títulos de nobreza importam: um é heráldico; o outro, de natureza genealógica. O primeiro recorta um escudo de armas com o campo cheio dos espinhos do sofrimento e manchado do sangue vertido na luta; a encimá-lo, tem o timbre da honra. No segundo, prescreve-se a obrigação estrita de ficar o nome de cada um gravado na memória dos sucessores. Dois títulos, qual deles o mais rico e ambos de muito peso para os que ousarem tomar sobre os ombros carga de tamanha responsabilidade.

A Tradição também dispensa antiguidades por muito dignas que sejam de figurar nos museus, galerias de arte ou em exposições de ocasião. Muito à semelhança do que se sutentou a respeito das genealogias e brasões, à Tradição não lhe interessam essas antiguidades e, sobretudo, não está nos seus propósitos perder tempo com algumas delas, autênticas velharias ressumando o bafio de arcas, onde se desfazem em pó. Nem quer gastar-se em labores improdutivos ou em folguedos pueris, que se poderiam compreender em divertimentos de crianças, mas não fora desse âmbito estrito.

A Tradição flui a par do tempo e corre ao compasso dele. Numa aguda e curiosíssima mensagem, S.toAgostinho escrevia que não seria correcto falar de «pretérito, presente e futuro»3 porque «(...) talvez fosse próprio dizer: os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras.»4 E logo ajuntava o conjunto que estes três tempos formavam: «(...) lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras.»5 Perfilhando a prosa do Bispo de Hipona, não repudiamos a luminosa ideia que, sobre o tempo, nos transmitiu o Doutor da Graça, o que nos vai permitir, mediante os devidos ajustes, proclamar a Tradição como aula duradoura do passado; pedagoga directa do presente; e estrela segura que anuncia a aurora de um porvir mais justo.

Agora é altura de cativeiro, um cativeiro longo e penoso na razão directa do pecado praticado. Os homens acham-se à beira de um abismo terrífico, porque, uma vez lá, dele não há retorno: é o abismo da perdição. De garras afiadas, o Demónio prende e rasga o tecido social. Um vento de loucura devasta paragens onde já floresceram culturas que as idades, ao longo dos séculos, não desistem de recordar e admirar.

Em toda a face da Terra, que povoamos, quem é réu desta ameaça de destruição?

O Islão, carregando o estigma de carrasco temível, pronto a recolher os despojos de um Ocidente amorfo e moribundo? Israel, aparentemente longe da conversão prometida por S. Paulo,6 porque de novo se roja aos pés do bezerro de oiro? A Rússia, herdeira do formidável colosso soviético e que se mantém esfíngica, ocultando o seu histórico messianismo? Uma Europa irreconhecível, que abdicou de si mesma depois de Vestefália e que é, actualmente, uma mistificação política gerada num lugar geográfico pouco firme? Será este amontoado disforme, ostentando um nome que não merece ir além de uma designação toponímica, e que hoje, miseravelmente impotente, já nem vigor tem para recordar o seu passado? Ou é o titã anglo-saxónico de além-Atlântico, que nunca transmitiu uma identidade, provavelmente porque nemo dat plus quam ipse habet? A China? O Japão? Alguma das Coreias? – Parece que a resposta mais avisada será a de culpas repartidas por todos!

A crise tormentosa, que nos aflige, exige como réplica a guerra. Essa guerra começará pela ascese individual. Constitui um exercício de todas as épocas, porque o primeiro inimigo que se nos atravessa, aquele que nos acompanha sem desfalecimentos, da concepção à tumba, é a concupiscência desordenada que em nós habita. Se permitimos que a sua persistência vença, será o mesmo que oferecer a esse inimigo a vitória que ele estima sobre todas, porque é entregar-lhe o nosso bem mais precioso – a alma. Depois desta ascese que é o combate contra quem intenta tomar-nos de assalto por dentro, vem o combate contra o inimigo externo. E é esse o que vulgarmente se vê como guerra. Pese embora isto venha a ferir alguns ouvidos pios, de uma piedade de duvidoso sentimento cristão, esta medida, na sua mais nua e crua expressão, sem obviamente esquecer a ascese, é a derradeira solução humana para proteger vidas e fazendas e, acima disso, acautelar a nossa tranquilidade contra a ameaça que pairar sobre todos os que anseiam atingir o fim sobrenatural. Só um milagre pode impedir a necessidade de buscarmos abrigo, um abrigo que é quase paradoxal pela certeza de que nos vamos refugiar numa tempestade de metralha, mas que não deixa outra escolha, se pensamos num auxílio puramente humano. Porque note-se bem: se não nos vale o Céu, onde está a defesa? Cruzamos os braços? Se o verbo é ainda a corporização formal dos conceitos e estes correspondem à verdade ontológica, Deus há-de demandar quem, dominado por tibiezas ou afogado em respeitos humanos, inclinar os demais à passividade e à rendição ante as novas hordas de bárbaros. Estes bárbaros não são outros Hunos que queimam e saqueiam os territórios que pisam. Eles moram dentro de portas: a fronteira já não é física, mas moral. Pode até ocorrer que a divisão se situe no coração de cada um, se ele não possuir ânimo bastante para sufocar as suas más tendências ou, ensandecido do juízo, se virar contra os seus códigos e padrões de valores. Esse também irá engrossar a horda de bárbaros.

Quantos são os desafios que vão colocar-se aos que se decidirem pela Tradição? E que sacrifícios lhes serão pedidos? Muitos e pungentes, sem ponta de dúvida!

A arquitectura medieval ergueu as mais belas catedrais que o génio humano alguma vez levantou. São obras-primas que saciam a sede de beleza do nosso espírito. As suas linhas seduzem e este encanto atravessou séculos, o que é fiança segura de continuidade. Todavia, o maior monumento deste período histórico não se compõe de pedras: a mais perfeita construção está na Respublica Christiana que encheu de benefícios a Europa quase inteira. Nunca, antes ou depois, se casou com tanta harmonia o modelo político com o espiritual de raiz cristã. Um Humanismo, de um antropocentrismo excessivamente soberbo, fez os primeiros estragos neste edifício; como era de esperar, seguiu-se a Reforma que lhe vibrou os mais duros golpes; o Despotismo Iluminado, com todos os destemperos do Enciclopedismo, não tardou; daí à Democracia e ao Liberalismo foram breves passos. O momento, que se vive, é a hora do delírio e para nele se cair, após o percurso aqui enunciado, foi mera questão de tempo.

No presente, a nossa civilização está à beira de ruir por completo: é um dado incontornável, já referido, e que ora se repete para melhor arrumação do que resta expor. A decadência é geral e toca os mais diversos campos: sentimento religioso; dignidade moral; culto da família; espírito comunitário, tudo isto foi paulatinamente invadido por um veneno letal. Na sua fereza, a Revolução não poupou templos, raças, países, classes ou instituições de qualquer procedência ou origem: o risco de o homem não sobreviver bate à porta. A sanha deletéria, que a impulsiona, traz o selo dos Infernos, porque não se lhe dá de também arder nas labaredas que ateou. O ódio é tão contra naturam que até apetece sofregamente triunfos com o travo das vitórias pírricas, onde acabará por se consumir à semelhança do herói do Epiro. O destino da Revolução é, efectivamente, o de se revolver nas cinzas, que a sua rota deixou atrás, e o de estorcer-se no meio do fogo, impenitente e raivosa por deparar com a derrota final. Sirva-nos este turvo panorama para que dele se extraia lição profícua. Ensina-nos a História que, mais do que aos inimigos externos, a responsabilidade da derrocada de impérios e de culturas deve ser imputada aos que atraiçoaram a herança recolhida. Se Deus desencadear um castigo cósmico, quantos serão poupados a esse decreto de extermínio, como o foram Noé ou Lot?

São múltiplos e gravíssimos os males que abalam o que sobeja de ordem social. No entanto, logo abaixo do declínio moral, aquele que mais assusta é a progressiva degradação do pensamento. A seguir se desenha o quadro de uma das mais gritantes manifestações desta derrocada :

Quando a vida humana é vista como um valor absoluto (e isto, intrigantemente, acontece por parte dos que se dizem seus defensores), se tal se verifica, não deve admirar que as portas, já escancaradas há muito, se abram ainda mais a todo o tipo de desmandos. Este jeito de olhar a vida humana padece de um erro ontológico inadmissível e é um dos despautérios mais em voga. Sempre que, com palavras muito cativantes, se proclama a vida humana como um valor absoluto, sustenta-se algo que choca, começando pela incoerência dialéctica dessa posição. Daqui irrompe um número incontável de tremendos contrassensos, mesmo para os que, sem ter como nós a graça da fé, não renunciaram ainda às faculdades de que estão assistidos como seres racionais. E, para os que cremos em Deus, esta construção teórica, além de repugnar ao entendimento, é de um arrojo inaudito com proporções de sacrilégio.

O valor da vida humana é um valor sagrado, isso sim, mas a nossa vida não está dotada de valor absoluto, porque absoluto, inequivocamente, só Deus. O homem participa da Sua essência, mas não é divino. Deus não tem princípio nem fim e n'Ele não há sucessão de qualquer espécie; o homem nasce, desenvolve-se, tem sucessão de operações, está sujeito ao envelhecimento e à corrupção da morte, só participando da eternidade o seu corpo ressuscitado, o qual vai unir-se à alma separada com a morte sofrida. Em suma: Deus é Acto Puro, é ens a se; o homem muda, existe ab alio.

É da essência divina o esse; o homem apenas o tem. Sendo radicalmente diferente a essência, diferente há-de ser tudo o que se lhe possa atribuir. Ferir a nota de absoluto, como propriedade da vida humana, atira-nos para um ponto sem saída, uma vez que esta posição se converterá automaticamente na negação da legítima defesa individual ou colectiva. E assim é que, sob a capa de campeões de um valor positivíssimo, com a qual se cobrem, todos eles vão alimentando a subversão, uns inadvertidamente, maldosamente os outros.

Medir e pesar o valor da vida humana nos seus exactos limites, é empresa árdua, mas nem assim devemos lançar ao desprezo este assunto apaixonante, que é, ao mesmo tempo, delicado e espinhoso: o problema merece particular atenção e a sua solução é de suma importância. Fixar a noção precisa da vida humana é imperioso para quem queira encontrar a base sobre a qual opera a Tradição. Sem vida, como é óbvio, a Tradição também não existiria, porque não tinha onde sustentar-se. De forma liminar, cumpre dizer que é a Tradição para o homem e não o invés. O excelso papel que a Tradição desenrola só tem lugar no palco do quotidiano: esta relação dita a necessidade de clarificar a noção de vida para se não duvidar do relevo que a Tradição assume na história do homem.

Convém, pois, ter presente que a vida é um dom outorgado pela magnânima liberalidade de Deus, e que fomos criados para amá-Lo, servi-Lo, glorificá-Lo e gozar da Sua visão beatífica. Temos apenas um direito: o direito permanente e inauferível de exigir condições para cumprir esta missão. E, pelos fundamentos já aduzidos, volta-se a lembrá-lo – a vida humana nunca há-de ser elevada à categoria de valor absoluto. A tal se opõe, conforme vimos, uma impossibilidade metafísica confirmada pela dogmática teológica. Por isso, a reprovação do recurso à guerra, arrancando de uma argumentação que repousa na falsa premissa de ser a vida humana um valor absoluto, não é de levar a sério. Mas, por mal dos nossos pecados, já se infiltrou no organismo das comunidades políticas em quantidade suficiente para as perturbar. Este incidente é mais um elemento a reforçar a nossa hostilidade contra tão incomensurado dislate.

Não se requer uma especial agudeza de análise, nem grande poder crítico para logo intuirmos casos em que a guerra é não só um direito como até um dever. Aquele que, de forma muito suspeita, invoca princípios religiosos para privar de legitimidade a defesa colectiva (e legítima defesa colectiva é a outra designação da guerra justa), esse que tal fizer, está certamente animado de má fé ou anda esquecido do castigo sofrido pelos benjamitas às mãos das outras tribos de Israel.7 E ainda maior é o despudor ou a ignorância ao calarem os depoimentos pertinentes a esta matéria, todos eles fazendo parte do riquíssimo espólio dos mais ortodoxos teólogos e filósofos do Direito!

Se cada vida humana fosse um valor absoluto, nem ao seu titular seria permitido dispor dela porque o seu direito à vida era absolutamente indisponível. Realmente, no dia em que se puder dispor de algo absoluto, ipso facto esse quid perde a sua qualidade absoluta. Se discorremos de diverso modo, isso implicaria negar a licitude do martírio e de tantas outras acções não só legítimas, como até louváveis e, às vezes, mesmo imperiosas.

Em jeito de remate, sobre o que se veio tratando, bastará só mais uma curta reflexão – diz ela respeito ao sacrifício do Gólgota. É, não comportando isto discusão, a maior dádiva do Criador. Com efeito, se o direito à vida fora um direito absoluto, como iria Jesus Cristo oferecer-Se à morte, para devolver o homem ao estado de justiça original?

Estas são páginas de luta e foi para ligar a vida à Tradição, marcando a função que a esta cabe em defesa daquela, que se optou por um discurso de combate. Portanto, não deve espantar que as linhas finais prossigam neste sentido, uma vez que a noção de vida foi adulterada mais, muito mais do que consentia uma já benigna e tolerante indulgência. Contra essa deturpação, aguarda-se remédio na Tradição e nela reside a nossa confiança.

Retomando o fio ao que se vinha desenvolvendo no que respeita à suposição de ser válida a opinião que vê um valor absoluto na vida de cada homem, o que de maneira alguma se concede nem concederá, regressando aí, vem de molde acrescentar que teríamos de fazer orelhas moucas ao chamamento para uma guerra defensiva porque, em obediência ao consequente de um antecedente sem tino, ou se se preferir, em fina criteriologia e são rigor de Justiça, não seria congruente afirmar esse valor para uns e recusá-lo a outros. Sendo todos, dentro daquela insólita tese, titulares de um direito absoluto sobre as suas vidas, se for o caso de alguma nação exercer violência sobre outra, como há-de esta reagir uma vez que a corrente, aqui refutada, declara que as vidas dos soldados do exército agressor também assentam sobre um direito de valor igualmente absoluto? É forçoso concluir que, a iniciarem-se as hostilidades e mantendo-se esta insensata teoria, teríamos oportunidade de contemplar um quadro de antagonismo, onde múltiplos valores absolutos se encontrariam na iminência de entrar em colisão frontal com outros valores absolutos. Quod absurdum!

Quando há campos opostos prestes a digladiarem-se, que estilo de convívio apregoam esses mensageiros de uma sociedade em que todos são titulares de um direito absoluto à vida, o que exclui, como vimos, a viabilidade de uma legítima defesa colectiva? Que códigos anunciam? O que daqui se deduz é que resultou bem clara a inexequibilidade de qualquer coexistência sob um regime tão abstruso. E esta impossibilidade estende-se aos casos de defesa de cada particular diante de quem injustamente o ataca. De facto, se o que ataca e o que defende são, um e outro, senhores de um direito absoluto sobre as suas próprias vidas, ao que sofre o ataque é-lhe vedado defender-se, se não tiver outro meio de sustar esse ataque sem provocar a morte do atacante. A validade do raciocínio é equivalente em todas estas situações: guerra (clássica ou subversiva); sedição; e defesa individual. Não quererão explicar-se melhor os promotores desta charada, de modo a eliminar um desacordo que, como sucede tão frequentemente, pode derivar apenas de um alcance mais afastado daquele que era prudente atribuir ao sentido vocabular das palavras usadas? – A dúvida, em que o façam, é lícita. De qualquer modo, não custa esperar. Entretanto, prossiga-se:

A guerra está legitimada, desde que se observe a tríplice condição que foi indicada por S. Tomás de Aquino – sumariamente, eis aqui os pressupostos indispensáveis: auctoritas principis; causa iusta; intentio recta.8 E casos há nos quais movê-la, além do poder moral e jurídico que é, se transforma num dever a cumprir. Fugir a este dever traduz omissão de uma tarefa que emana de um comando categórico: desacatá-lo, nestas circunstâncias, cheira a deserção e pode ser concausa ou, pelo menos, ocasião da iniquidade que se vai assenhoreando de todo o Mundo!

Mutatis mutandis, no magistério do grande teólogo, também o direito à rebelião contra o tirano vai achar a sua justificação: «(...) regimen tyrannicum non est iustum (...).»9 Os pontos de apoio, de que o Doctor Communis se socorre na questão de seditione, quando não são formalmente repetidos, ao menos em substância, sempre subentendem o conhecimento e a concordância com os da questão de bello. Sendo idêntica a matéria versada, as conclusões a tirar têm necessariamente de se aproximar, podendo mesmo chegar à fusão completa. Determina isto que quanto foi usado para mostrar a inconciliabilidade entre o fundamento da guerra justa e o pretenso direito absoluto à vida, isso tudo é inteiramente aplicável ao confronto que se cava entre a revolta contra o tirano e aquele descomedido direito à vida.

Sobre a defesa do particular escusado será argumentar muito: é um direito natural e é dele que os outros brotam. Brotam dele e para preservação do seu titular porque hominum causa, omne ius constitutum.10   

Não se pense que, por falar na legitimidade da guerra, da insurreição ou da defesa pessoal, cumpridos prévios requisitos, não se creia, repisa-se, que o combate pela equidade se confina ao campo de pugnas cruentas. A luta pela civilização, que é afinal a luta da Tradição, pode e deve travar-se em três frentes: rezando; doutrinando; e, se as circunstâncias assim o exigirem, pelejando de armas na mão. Portanto, a uis física nem sequer é uma fatalidade, como também não transporta o único meio de defesa: antes, vem a ascese do espírito e o respeito pela moral. 

Quando vai ser o termo desta Cruzada? – mm  É uma incógnita. Contudo, um dia a sarça voltará a arder e uma nova Páscoa há-de raiar. Então, outro Moisés surgirá para guiar o povo de Deus à Terra da Promissão!11

 

Joaquim Maria Cymbron

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  1.  O Desengano, n.º 16, p. 7.
  2. Correspondencia con el conde de Raczynski, 13 de agosto de 1849.
  3. Confissões, liv. XI, cap. 20.
  4. Ib.
  5. Ib.
  6. Rom. 11, 25 e ss. Não é deslocado lembrar, aqui, a recente irrupção de medo provocado pela explosão de um autoproclamado Estado Islâmico. A selvajaria daquelas gentes e o cortejo de barbaridades perpetradas têm necessariamente uma causa. Desde logo, deve chamar-nos a atenção o facto de, pelo menos até hoje, não ter sofrido o mais pequeno dano qualquer interesse israelita, especificamente considerado, nem sequer outro de toda a nação hebraica. É bem sabido que os Judeus, numa prática constante e antiga, semeiam a cizânia entre terceiros, servindo-se dos antagonismos que os separam, e disso tiram benfício. Com um dito Ocidente cada vez mais dessacralizado, não lhes resulta difícil opor o furor sanguinário de uns tresloucados contra tudo que apresente um sinal de Cristianismo, por mais esbatido que esteja. Se mais não significa, sempre actua como um motor. São também suficientemente hábeis para, dentro da própria família muçulmana, aproveitarem a divisão entre xiitas e sunitas. Enfim, explorando todas as contradições existentes (como se exprimiria a dialéctica marxista-leninista), não perdem oportunidade de criar conflitos que são mortíferos!
  7. Iud. 20, 11-48.
  8. Summa Theologica II-II, q.40, a.1.
  9. Ib., q. 42, a. 2, ad 3.
  10. D. 1, 5, 2.
  11. Ex. 3, 1-22.

JMC